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A ANTIGA RUA DA LOCA


MINHAS CRÔNICAS - N 02

A ANTIGA RUA DA LOCA

Por Raimundo Pompe

Na opinião do escritor Gabriel Garcia Márquez “um escritor já nasce escritor, porque nasce com o dom e vocação de escrever, precisando apenas aprender a escrever”. Por ter a plena consciência de que ainda preciso aprender escrever, foi o motivo que me fez resistir escrever uma crônica rememorando o passado da antiga “Rua da Loca”. 

E que por faltar-me intimidade com o cotidiano daquela lendária rua, eu temia cometer um tropeço ao tentar descrever sua história. Felizmente, graças ao meu amor às letras, foi-me possível ensaiar esta crônica, pois dizia Capistrano de Abreu: “As obras escritas com amor são as únicas que pagam o sacrifício de escrever". 

Se assim é, vamos, pois, ao sacrifício.

Tudo começou ainda nos anos 30 quando ali surgiu a primeira casa para encontros sexuais. A partir daí, quem viveu sua mocidade em Granja até o início da década de 70 e não conheceu de perto aquele antigo esconderijo, a “Rua da Loca”, não viveu, envelheceu sem ter vivido. Por várias décadas, a orgia masculina comandava o dia-a-dia daquelas mulheres da comédia, que ali desfrutavam o que a vida lhes proporcionava, deixando-se dominar pela lascívia do gozo e do prazer de viver um mundo de fantasias e ilusões.

Havia muito contentamento naquele ambiente, que dava à noite aspecto de alegria com exuberância, dissoluta e cheia de grandes emoções, como se fosse eterno festival de deuses. No local destinado a dança – o “Salão do Barroso” - orquestras compostas de várias figuras granjenses fazia animadas noites pelos mais variados ritmos. Os mais comuns eram os “maxixes” animados ao som da sanfona do mestre Dionísio, acompanhado da calorosa voz do Arturzinho. 

Todo o cenário panorâmico daquela rua permanece armazenado na memória de muita gente. O interessante era que naquele mundo diferente, os grã-finos se misturavam à classe dos proletários, talvez porque os interesses de todos fossem os mesmos. Comparecia sempre às escondidas, a fina flor da cidade (homens solteiros, casados e comprometidos), esbanjando elegância com o tradicional traje de linho branco acetinado, bem engomado por antigas passadeiras, cujo brilho chamava a atenção dos observadores, e, causava suspiros as “mariposas”, que ali se assentavam para fazer o seu meio de vida assumido com profissionalização. 

Por outro lado, todas Chicas e cunhãs, se enfeitavam como se fossem bonecas de vitrine. Não podia faltar o batom e o ruge da marca Coty, e muito menos o infalível banho das loções Royal Briar, Promesa ou Madeira do Oriente, cujo odor excessivo, que além de deixar aquelas Marias perfumadas como rosas, também funcionava como se fosse uma espécie de “feromônio”.
 
Naquele tempo um pequeno gerador movido por motor a óleo diesel era o responsável pela precária iluminação pública, que por volta das onze horas da noite deixava toda a cidade às escuras. A partir daí os botequins eram iluminados por lamparinas e lampiões em garrafas de vidro com querosene e longos pavios feitos de estopas. 

A escuridão facilitava aos endiabrados rapazes a prática de desordens. Assim, toda a “zona” se tornava perigosa. Um pequeno destacamento policial, com rigor, tentava manter a ordem e a tranquilidade do lugar.

Enquanto isso as “damas da noite” soltavam galanteios, a fim de atrair os fregueses que se postavam nos botequins. A intenção de todas era iniciar, à primeira vista, um rápido romance que às vezes terminava em xodó, diante da preferência pelo concúbito e dos agrados da alcova.
 
Com troca de olhares e nesse vaivém, as jovens “cortesãs” ficavam aguardando a aproximação do primeiro freguês, e após um ligeiro diálogo adentrava ao recôndito do amor, no pequeno quarto lupanar, reservado especialmente para os encontros, que, na maioria das vezes, não durava mais do que meia hora de carinhos. Após a consecução do ato e o pagamento do michê, liberavam-se com atenciosa despedida e a promessa de um novo encontro num dia aprazado.

Ao término do encontro, a mulher do fado já saía do quarto porque tinha que continuar na sua batalha em busca de um novo freguês para outra aventura amorosa que o destino lhe reservara como meio de vida e aproveitar a sorte e a sua mocidade. Algumas residiam nos bairros da cidade e chegava somente à noite, como se fossem “borboletas noturnas”. Outras residiam ali mesmo. Seu mundo doméstico resumia-se a um pequeno dormitório. 

Nada de luxo e conforto. Somente uma cama ou rede. No canto, um velho pote e um alguidar de barro, além do sabão para os rapazes em que as palomas faziam assepsia. Naquela época ninguém pensava em AIDS, nem por se ouvir falar em preservativos, razão pela qual as “doenças do mundo”, como eram chamadas as gonorreias, as mais comuns nos frequentadores. 

A cura era encontrada nos medicamentos manipulados pelas prodigiosas e benfazejas mãos do farmacêutico Hugo Mota. Nas décadas mais recentes, já com o advento da penicilina, a rapaziada ficava sob os cuidados do Dr. Raimundo Fortuna. Nos casos mais rigorosos eram necessários que os pacientes se submetessem a tudo em segredo, evitando assim chegar ao conhecimento das pessoas, principalmente das suas namoradas.

Após a cura, os jovens prosseguiam em mancebia, embora corressem o risco de perder o bom conceito e sofrer discriminação por parte da sociedade. 

Era um mundo diferente, onde nenhuma mulher que se prezava jamais se atreveria a pelo menos se aproximar daquela rua. Atravessar ali era pecar contra uns três ou quatro mandamentos e ir diretamente para o inferno, sem nem mesmo ter direito a um “pit stop” no purgatório.

Aquelas humildes casas de taipa e teto baixo, aquele frondoso fícus e aquela majestosa pedra em formato côncavo, local predileto para o uso secreto da maconha, e enfim todo cenário panorâmico daquela rua permanece armazenado na memória de muita gente. Sobre aquela pedra as “ovelhas desgarradas” se aglomeravam para praticar libações e libertinagens em excesso, transformando aquele local, palco de desventuras humanas. Também ali era o local preferido para os embates do amor vendido à granel.

Assim era a antiga Rua da Loca. Um ambiente pesado e de agitação buliçosa que ficou marcado para sempre na história da Granja.

Finalmente, se quem nada sabia da decantada e falada “Rua da Loca”, - hoje, parte da atual Rua 2 de Novembro - , agora pode ter a ideia de um passado remoto, ao mesmo tempo em que outros podem recobrar na memória grandes recordações deixadas pela sua mulher fatal, que se envolveu no passado em suas vidas e, fora de quem não teve naquela época a vida envolvida na vida de uma daquelas mulheres da vida, tudo hoje virou cinza e do tempo restou-lhe somente as saudosas recordações de quem viveu a realidade da antiga Rua da Loca.



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