A PRAÇA DA MATRIZ
Minhas Crônicas Nº 5
Aquela praça, à semelhança
das outras, tem a sua história. São histórias diferentes que ficaram gravadas
na memória de muita gente que ali viveu momentos inesquecíveis, assim como eu.
Ali brinquei de soldado, fazendo parte de um batalhão armado de revólver de plástico e boné feito de papel. Ali, vários outros curumins, assim como eu, brincaram com pião, do “trisco”, jogaram bilas, soltaram papagaio confeccionado de taliscas do coqueiro e papel de seda. O “rabo” era feito de retalhos de tecidos.
A Praça da Matriz era o local preferido da meninada para qualquer tipo de
brincadeira. Suas largas calçadas laterais e passarelas centrais com formatos
curvilíneos eram o local ideal para as minhas corridas de “patinete”, feitos de
madeira e montados sobre três velhas rolimãs de aço, adquiridas na oficina
mecânica do meu pai. Fez por outra, corríamos para o parque infantil.
Opção de
brinquedos era o que não faltava, mas o que eu mais gostava era de descer no
“escorrego”, embora corresse o risco de ter o calção rasgado por um daqueles
“pregos” traiçoeiros.
Sobre a linha férrea passava o trem nos fins das tardes, e quando se ouvia de longe o apito da locomotiva anunciando sua entrada na cidade, todos os meninos paravam as brincadeiras para ver o comboio passar.
A Praça da Matriz era intensamente florida. O colorido de flores diversas era de encher os olhos de qualquer um. Sem falar nos frondosos pés de “Flamboyant” e “Ficus” que ofereciam maravilhosa sombra durante o dia. Na parte onde ficava o parque infantil, existia um caramanchão floreado de belas meiguices, onde à noite os casais mais afoitos arriscavam um namoro mais ousado.
“Seu” Frauzinho,
velho alto, moreno e de cavanhaque grisalho, era o zelador. Com seu chapelão de
palha e chiqueirador na mão, mantinha a ordem e a beleza daquele lugar.
Cuidava da jardinagem com esmero. Incansavelmente retirava, balde a balde, do
poço sob o coreto no centro da praça, toda água que fosse suficiente para regar
os lindos roseirais.
Nas noites em que funcionava o “Cinema”, a praça se apinhava de gente para ouvir as músicas românticas na irradiadora, aguardando o início da projeção cinematográfica.
Mas animação se via mesmo nos festejos do padroeiro São José. Aí então ela ficava lotadíssima de fiéis para assistir a Banda de Música executando lindos dobrados. Cisne Branco era o que mais gostava de ouvir.
Nas épocas dos grandes invernos, quando o Rio Coreaú transbordava, suas águas chegavam a tocar a calçada. Aí centenas de curiosos se amontoavam para ver as canoas indo e vindo constantemente, transportando os moradores da rua do Piauí (imbecilmente emplacada de “Rua Boulevard” Coreaú), que ficavam ilhados do outro lado da via férrea. Havia ali um bueiro onde a gurizada mais afoita arriscava um bom mergulho, saltando para nadar naquelas águas imundas, barrentas.
Relata o historiador Gustavo Barroso, em “O Livro dos Enforcados”, que naquela praça foi enforcado o negro Luiz, escravo de Inácio João de Magalhães, que matara o seu “senhor”, na antiga Vila de Viçosa Real, hoje Viçosa do Ceará. Registra a história que o preto praticara um furto, delito que o acusara como autor, o delegado Mota, que por essa razão foi castigado com cem chibatadas de chicote.
Descoberta a autoria legítima, foi o cativo ameaçado pelo seu “amo” de mandá-lo para o Maranhão. Diante dessa ameaça, matou-o também, a tiro de bacamarte com bucha de raspa de taboca, sendo por isso condenado pelo júri da Vila, à pena de morte.
Chegou à Granja, lugar designado para execução, com o corpo lanhado pelos
açoites que recebera e de cujas feridas caíam “tapurús” quando subiu ao
pelourinho erguido naquela praça. O processo do negro ficou conhecido como o
“Processo dos Inácios”. Pois a vítima chamava-se Inácio; Inácio João, era o seu
pai; e Inácio José, o juiz que presidiu o julgamento e também outro. O Inácio
José, advogado da defesa.
Lembro-me até hoje dos antigos moradores ao redor da praça. Logo na rua à direita da igreja, naquele antigo casarão, morava o farmacêutico Raimundo Fortuna. Entre e, em seguida, era a residência do Chico Meton. Havia um beco estreito que, à noite, ficava um “breu”.
Nenhum menino da turma arriscava se
aproximar, pois se acreditava que aquela viela era mal-assombrada. Em seguida,
morava dona Conceição Leite e, após, Júlio Angelim, respeitado comerciante no ramo
de calçados. Atravessando a rua, morava Zé Bernardino, ótima criatura, e um pouco
adiante, sua mãe, dona Maria Stela, senhora de qualidade e bons princípios, que
nos momentos de sede me servia boa água.
Do outro lado da praça, na primeira casa da rua, morava Raimundo Angelim, próspero comerciante, e ao lado, seu genro Rawlison, proprietário do Cine Órion. Em seguida, era a casa da dona Maroca Rodrigues e na esquina o bar e cassino do Raimundo da Sebastiana, onde os ludopatas viravam a noite em claro nos jogos de cartas.
Do outro lado da rua, na esquina, funcionava o “Cinema”, e em sequência morava três grandes amigos do meu pai: o ex-prefeito Antonio Gouveia, o competente cartorário Cícero Dias e o renomado dentista Sílvio Cruz, em cuja residência funcionava seu consultório odontológico, de onde constantemente se ouviam os “berros” da gurizada diante do seu temido alicate. Na casa ao lado moravam as irmãs Dadá, Maria Laura e Elisa Sá.
Três “moças velhas”
simpáticas. Sobreviviam da fabricação de vinagre caseiro de excelente qualidade
e da venda de doces e guloseimas feitas de goiaba ou do mel da rapadura. Eu
adorava ir à compra do precioso tempero líquido, pois o troco me servia para
comprar aquelas espécies de pirulitos modulados em formato de cachimbos, revólveres
e pássaros que elas manufaturavam com esmero.
Mas nenhum morador perto dali atraía tanto a curiosidade da meninada quanto Antônio Rodolfo pelo fato de ir várias vezes à igreja. Beato fervoroso, e sempre vestido com roupas na cor marrom-franciscano, com a bíblia e terço na mão, ia várias vezes no dia ao templo religioso fazer suas orações.
Do outro lado da Praça, existia um velho prédio de arquitetura colonial, ao qual deram o nome de “Feijão”, por ter servido de armazém desse tipo de produto.
Ali funcionou quase de
tudo, até uma espécie de clube dançante onde aconteciam os tradicionais
“maxixes”, como eram chamados os forrós de “segunda classe”, onde era comum
acontecer arruaças.
Certa vez, um jovem rapaz da sociedade, no auge de sua
mocidade, movido de empáfia, ao ser interpelado pelo destacamento policial,
iniciou um fuzuê e aí sobrou para um franzino soldado que acabou sendo sentado
forçadamente num daqueles fogareiros improvisados em lata de querosene, chegando quase a ter sua região glútea fritada nas brasas em chama, não fosse de
excelente qualidade o tecido de cáqui de sua farda.
Embora sem lustre, eis aí um pouco da história da Praça da Matriz da Granja. Algumas histórias são inusitadas, curiosas e outras alegres e divertidas. São fatos que permanecerão guardados no caleidoscópio das boas lembranças das pessoas que tiveram partes de suas vidas vividas ali.
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